Pular para o conteúdo principal

Anotações sobre Marco territorial, Marco temporal, Grilagem e Senso comum douto

Estava buscando algumas novidades para o programa do Helvio Tamoio Comitiva Paracatuzum TV (https://www.youtube.com/c/ParacatuzumTV) que vou participar falando sobre "Marco territorial e grilagem". Não sei bem como esse título do tema foi escolhido, mas achei interessante por que articula a dimensão espaço-tempo em uma expressão que funde marco territorial (utilizado para marcar pontos no terreno) com o termo "marco temporal", uma invenção criada por defensores dos interesses dos agronegócios, grileiros e outros. 

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Samuel Barbosa (2017) diz que:

Se você ler o artigo 231 da Constituição não se fala em Marco Temporal. O que diz a Constituição? Os povos indígenas têm o direito à reprodução física e cultural. Para isso têm direito às terras que tradicionalmente ocupam. Como é definida essa ocupação tradicional? A Constituição diz que vai ser feito um trabalho com peritos, antropólogos, historiadores. Não diz qual a data. Ela garante direitos originários, que são históricos. A fixação dessa data é inconstitucional. [...] Por isso a mobilização de todos aqueles que trabalham, militam, estudam a temática é da maior importância, para informar o risco que é o Marco Temporal. Ele vai levar à extinção de povos, é quase uma anistia de grilagem de terras do passado, não é o melhor modo de interpretar a Constituição.

Agora em setembro de 2021, o debate reacende quando está sendo retomado o julgamento que ocorre no Supremo Tribunal Federal para decidir se existe ou não um "marco temporal" para a demarcação de terras indígenas no Brasil. 

Este debate volta à tona por causa de uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI (Terra Indígena) Ibirama-Laklãnõ que foi parar no STF (OLIVEIRA, 2021). Segundo Tânia Oliveira (2021):

Em julho de 2017, com fundamento no art. 40 da Lei Complementar 73/93, o então presidente da República, Michel Temer, aprovou parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que determinou que a União deveria seguir a decisão do STF sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol em todos os processos de demarcação de terras realizados pelo governo federal. Na prática, o parecer adquiriu força de lei, em norma de seguimento obrigatório.

Não é por acaso que essa decisão da AGU tenha ocorrido justamente durante o governo de Michel Temer, como destaca Samuel Barbosa (2017):

Michel Temer governa com uma base de sustentação no Congresso composta por uma bancada ruralista. Ela tem apresentado uma série de projetos que colocam em risco direitos sagrados da Constituição. O momento em que estamos é o de uma coalizão conservadora muito agressiva. Fizeram uma CPI da Funai e do Incra que condenava o trabalho de antropólogos, de membros do Ministério Público, isso releva uma agressividade poucas vezes vista.


  

Cartaz da Comitiva Paracatuzum TV organizada por Helvio Tamoio

Nessa busca, minha colega Sinthia Cristina Batista, Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e uma grande especialista no tema, me sugeriu o texto de Carlos Marés, Marco temporal, marca do atraso, publicado em 08/07/2021 no site do CIMI: https://cimi.org.br/2021/07/marco-temporal-marca-do-atraso/

Sinthia também recomendou o memorial do Instituto Socioambiental (ISA): #MarcoTemporalNão: entenda por que não tem 'muita terra para pouco índio' no Brasil, publicado em 31 de Agosto de 2021 (ISA, 2021).

Cartaz do ISA (2021)

Cartaz do ISA (2021)

Como tenho gostado de ouvir podcasts (principalmente enquanto caminho) fui buscar o tema e encontrei por acaso vários episódios interessantes, dos quais destaco alguns recentes que gostei muito: 

  • Indígenas em vigília: o debate sobre o 'marco temporal' (ESTADÃO, 2021) publicada em 1/09/2021 e contou com a participação do procurador da República Julio José Araujo Junior, autor do livro: "Direitos territoriais indígenas: uma interpretação intercultural"; além do indígena Maurício Ye'kwana, Diretor da Hutukara Associação Yanomami, e o repórter de política do Estadão em Brasília, André Shalders.


  • Grilagem para Principiantes (ou: como ir passando a boiada) (VIRACASACAS, 2021) que foi ao ar em 27 de abril de 2021e traz um valioso depoimento de Maurício Torres, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e que por sinal participa do mesmo grupo de pesquisa ligado ao professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira (USP) que faz parte minha colega Sinthia Batista.

As duas são altamente recomendadas mas vou me ater mais aqui à segunda. A entrevista riquíssima guiada pelos excelentes Gabriel Divan e Carapanã que vai fundo na experiência profissional e de vida de Mauricio Torres. Algumas dessas experiências e vivências estão documentadas nos textos, que estão na página do podcast como recomendações de leitura:

  • Dono é quem desmata: conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense (TORRES; DOBLAS; ALARCON, 2017)
  •  Grilagem para principiantes: guia de procedimentos básicos para o roubo de terras públicas (TORRES, 2018)

Maurício Torres define que o desmatamento é um instrumento de controle territorial e após o desmatamento os agentes tentam se apropriar da terra através de práticas de grilagem. Com certa frequência o auto de infração emitido por órgãos de fiscalização ambiental serve como documento de prova de que aquele agente está no local há um certo tempo, proporcional ao tempo do desmatamento.

Em relação ao desmatamento na Amazônia, região que Maurício Torres conhece bem, ele fala sobre os parques de papel. Trata-se de Unidades de Conservação que foram criadas em gabinete e que não tem efetivo manejo, mas servem para frear o desmatamento. O argumento de Maurício Torres é que não se desmata para produzir e sim para roubar. É por esse motivo que não o desmatamento não avança sobre terras destinadas como são as Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Dentro de terras de destinadas aquela terra desmatada não poderá ser passada para o nome do desmatador.

Falando sobre a questão da estrutura da terra no Brasil, Maurício Torres aos 46 minutos do podcast relembra José de Souza Martins dizendo que "onde a terra é livre, o trabalho não é; e onde o trabalho é livre, a terra é que não pode ser".

No prefácio da 9ª edição do livro O Cativeiro da Terra de José de Souza Martins (Prefácio à 9ª do O Cativeiro da Terra - https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4407994/mod_resource/content/2/MARTINS-Jose%20de%20Souza_O-Cativeiro-da-Terra_cap-1.pdf):

"O país inventou a fórmula simples da coerção laboral do homem livre: se a terra fosse livre, o trabalho tinha que ser escravo; se o trabalho fosse livre, a terra tinha que ser escrava. O cativeiro da terra é a matriz estrutural e histórica da sociedade que somos hoje. Ele condenou a nossa modernidade e a nossa entrada no mundo capitalista a uma modalidade de coerção do trabalho que nos assegurou um modelo de  economia concentracionista. Nela se apoia a nossa lentidão histórica e a postergação da ascensão social dos condenados à servidão da espera, geratriz de uma sociedade conformista e despolitizada. Um permanente aquém em relação às imensas possibilidades que cria, tanto materiais quanto sociais e culturais."
Capa do livro de José de Souza Martins

A entrevista com Maurício Torres avança por vários caminhos e em determinado momento trata da questão do discurso de que falta terra no Brasil para plantar e produzir. A equipe do podcast Gabriel Divan e Carapanã lembram que este é um discurso baseado em dados de qualidade muito duvidosa criada pelo "fabulador oculto" Eduardo Evaristo de Miranda, termo cunhado em reportagem recente da Revista Piauí (ESTEVES, 2021). 

Sobre essa questão do discurso ideológico de escassez de terras servindo de verniz para encobrir velhas ideias, Maurício Torres lembrou do termo de "senso comum douto" que segundo ele foi citado por Alfredo Wagner de Almeida. Buscando esse termo encontramos o artigo Quilombos: Repertório Bibliográfico de uma Questão Redefinida (1995-1997) de Alfredo Wagner Berno de Almeida (1998, p. 59):

"Os critérios político-organizativos que asseguram as mobilizações e consubstanciam identidades coletivas e novos símbolos são apontados como descrevendo outras possibilidades de utilização do conceito de etnia. Esta dupla passagem, em termos de teoria e conceito, explicita o quanto tal questão está se constituindo em objeto de disputa entre diferentes domínios do saber. Ademais, são várias as acepções de quilombo, em jogo, muitas delas conflitantes entre si e classificando outras de anacrônicas e preconcebidas. Há uma nítida disputa pela legitimação. [...] No estudo das autodefinições, as pesquisas têm constatado superposições, tanto de territórios — as chamadas terras de preto e as terras de índio — quanto de identidades; ainda que não se tenha constatado aqui uma transitividade identitária à molde daquela que, nos Estados Unidos, envolve a categoria black indians (Katz, 1986). Tais constatações revelam a complexidade de certos obstáculos dispostos às formulações do senso comum douto para pensar a sociedade brasileira, e, por extensão, às investigações antropológicas. Procedimentos metodológicos e hábitos intelectuais que foram úteis em passado recente, agora podem entravar o trabalho de pesquisa. A ressemantização de quilombo teria, neste sentido, uma dimensão nitidamente epistemológica que é co-extensiva à delimitação do objeto." (grifo nosso)

Pesquisando um pouco mais descobri que um dos primeiros a utilizar o termo nas ciências sociais talvez tenha sido Pierre Bourdieu no livro O poder simbólico (Capítulo II: Introdução a uma sociologia reflexiva. p. 44-45):

"O exemplo que acabo de dar, com a noção de profissão, é apenas um caso particular. De facto, é toda uma tradição douta da sociologia que é necessário pôr constantemente em dúvida, e da qual há que desconfiar incessantemente. Daí, esta espécie de double bind a que todo o sociólogo digno deste nome está constantemente exposto: sem os instrumentos de pensamento oriundos da tradição douta, ele não passa de um amador, de um autodidata, de um sociólogo espontâneo — e nem sempre o mais bem colocado, tão evidentes são, frequentemente, os limites da sua experiência social —, mas estes instrumentos fazem que ele corra um perigo permanente de erro, pois se arrisca a substituir a doxa ingénua do senso comum pela doxa simples senso comum douto, que atribui o nome de ciência a uma simples transcrição do discurso de senso comum. É aquilo a que chamo o efeito Diafoirus: observei frequentemente, sobretudo nos Estados Unidos, que, para se compreender verdadeiramente aquilo de que este ou aquele sociólogo fala, é preciso (e basta) ter lido o New York Times da semana ou do mês anteriores, que ele retraduz nessa terrível linguagem-barreira, nem verdadeiramente concreta nem verdadeiramente abstracta, [página 45] que lhe é imposta, sem ele mesmo saber, pela sua formação e pela censura do establishment sociológico." (grifo nosso)

Como não é minha intenção esgotar as inter-relações entre o Marco territorial, Marco temporal, Grilagem e Senso comum douto, até por que esse último termo aparece meio que por acaso a partir do podcast com Maurício Torres (VIRACASACA, 2021), vou encerrando por aqui. 

Mas antes de ir embora, me chama a atenção que o "senso comum douto" tem contaminado ideologicamente o debate da questão da distribuição de terras aos brasileiros, como mencionado no caso do Evaristo de Miranda. Além disso, o debate sobre o "marco temporal" também está bastante contaminado pelo "senso comum douto" tendo em vista que não existe a expressão "marco temporal", ou nada semelhante, na nossa Constituição como nos lembra Barbosa (2017). Mais do que isso, esse debate avança justamente a partir daquele parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre o caso da TI Raposa Terra do Sol, utilizando o que poderíamos chamar de "senso comum douto" que baseia as decisões político-ideológicas tomadas durante o governo de retrocessos de Michel Temer. 


Referências

ALMEIDA, A. Quilombos: Repertório Bibliográfico de uma Questão Redefinida (1995-1997). BIB, Rio de Janeiro, n. 45, 1.° semestre de 1998, pp. 51-70. http://anpocs.com/index.php/bib-es-2/bib-45/485-quilombos-repertorio-bibliografico-de-uma-questao-redefinida-1995-1997/file

BARBOSA, S. “Marco Temporal levará à extinção de povos indígenas e regularizará grilagem”, diz professor da USP. De Olho nos Ruralistas - Observatório do agronegócio no Brasil, 14/08/2017. https://deolhonosruralistas.com.br/2017/08/14/marco-temporal-levara-extincao-de-povos-indigenas-e-regularizara-grilagem-diz-professor-da-usp/

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/2018/06/BOURDIEU-Pierre.-O-poder-simb%C3%B3lico.pdf

ESTADÃO. Indígenas em vigília: o debate sobre o 'marco temporal'. Estadão, 1/09/2021. Apresentação: Emanuel Bomfim Produção/Edição: Jefferson Perleberg, Ana Paula Niederauer e Julia Corá Montagem: Moacir Biasi. https://brasil.estadao.com.br/blogs/estadao-podcasts/indigenas-em-vigilia-ruralistas-orquestrados-o-debate-sobre-o-marco-temporal/

ESTEVES, Bernardo. O Fabulador oculto: A trajetória e os métodos de Evaristo de Miranda, o ideólogo da política ambiental de Bolsonaro. Revista Piauí, edição 174, março 2021. https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-fabulador-oculto/

ISA - Instituto Socioambiental.  #MarcoTemporalNão: entenda por que não tem 'muita terra para pouco índio' no Brasil. Publicado em 31 de Agosto de 2021. https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/marcotemporalnao-entenda-por-que-nao-tem-muita-terra-para-pouco-indio-no-brasil

MARÉS, C. Marco temporal, marca do atraso. Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Publicado em 08/07/2021. https://cimi.org.br/2021/07/marco-temporal-marca-do-atraso/

MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. Editora Contexto. http://www.suelourbano.org/wp-content/uploads/2017/09/O-Cativeiro-da-Terra-Jos%C3%A9-de-Souza-Martins-1.pdf

OLIVEIRA, Tânia. O “marco temporal” da usurpação dos direitos indígenas. Brasil de Fato, 25/08/2021. https://www.brasildefato.com.br/2021/08/25/o-marco-temporal-da-usurpacao-dos-direitos-indigenas

TORRES, Mauricio. Grilagem para principiantes: guia de procedimentos básicos para o roubo deterras públicas. In: MARQUES, M.I.M. et alii. Perspectivas de Natureza: geografia, formas denatureza e política. Annablume, 2018, p. 285-314. https://www.academia.edu/38799592/Grilagem_para_principiantes_guia_de_procedimentos_b%C3%A1sicos_para_o_roubo_de_terras_p%C3%BAblicas

TORRES, M.; DOBLAS, J.; ALARCON, D. Dono é quem desmata: conexões entre grilagem e desmatamento no sudoeste paraense. São Paulo: Urutu-branco; Altamira: Instituto Agronômico da Amazônia, 2017. https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/nsa/arquivos/dono_e_quem_desmata_conexoes_entre_gril1.pdf

VIRACASACAS. Grilagem para Principiantes (ou: como ir passando a boiada). Viracasacas, publicado em 27 de abril de 2021. episódio #220. Expediente: Pai-Fundador: Felipe Abal; Apresentação: Gabriel Divan e Carapanã; Capas: Gui Toscan; Edição de Áudio: Thiago Corrêa & Estopim Podcasts. https://viracasacas.com/2021/04/27/220-grilagem-para-principantes-ou-como-ir-passando-a-boiada-com-mauricio-torres/

Comentários

Postagens mais vistas nos últimos 30 dias

Expansão urbana da cidade de São Paulo (1800-2000)

Os mapas e arquivos mostrando a expansão urbana de São Paulo estão acessíveis gratuitamente no site da Lincoln Institute of Land Policy, como parte do Atlas da Expansão Urbana, organizado por Angel (2010). Mais informações sobre o Atlas no site . Fonte: ANGEL, S., PARENT, J.;  CIVCO D.; BLEI, A. Atlas of Urban Expansion. Cambridge MA: Lincoln Institute of Land Policy, 2010. Online at  http://www.lincolninst.edu/subcenters/atlas-urban-expansion /. Sobre o projeto: "The Atlas of Urban Expansion provides the geographic and quantitative dimensions of urban expansion and its key attributes in cities the world over. The data and images are available for free downloading, for scholars, public officials, planners, those engaged in international development, and concerned citizens. The global empirical evidence presented here is critical for an intelligent discussion of plans and policies to manage urban expansion everywhere." Sobre os mapas da seção 2 "30 Cities in Histo

Wikimapia: Tumbas e mausoléus vistos do céu

Pirâmides de Quéops e Quéfren no Cairo, Egito Publicado no Wikimapia blog  em agosto de 2012 - "Top 10 most magnificent tombs of the world on Wikimapia" Nessa postagem é possível ver a localização de outros nove tumbas e mausoléus famosos. Taj Mahal The Che Guevara Mausoleum

Cabos submarinos de internet e telecomunicações

Dica do amigo Eduardo Virgilio: Site  |   Facebook No início de 2017, existiam aproximadamente 428 cabos submarinos em operação. Este mapa interativo mostra as conexões dos cabos submarinos de telecomunicações. São cabos de fibra ótica que levam informações entre as cidades e continentes. O mapa interativo está em:  http://www.submarinecablemap.com Mapa de cabos submarinos no mundo Fonte:  http://www.submarinecablemap.com No mapa, o trajeto dos cabos é estilizado e não corresponde à localização exata do cabo. Percebe-se que existem áreas com bastante conexão como é o caso do Brasil, que possui conexões com diversos outros países e inclusive possui uma série de cidades litorâneas conectadas entre si. Mapa de cabos submarinos ligando cidades litorâneas brasileiras http://www.submarinecablemap.com Um caso interessante é do cabo submarino que leva informação para Cuba, que parte da Venezuela, um bom caso para se estudar a geopolítica das telecomunicações.